Liberdade de Expressão & (X) Regulação da Mídia e da Liberdade de Manifestação de Pensamento
Ação e Reação
AÇÃO E REAÇÃO
Liberdade de Expressão
& (X)
Regulação da Mídia e da Liberdade de Manifestação de Pensamento
Por:
Álvaro Carlos Ramos Barbosa
Doutor
e mestre em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Pesquisador
do
Grupo de Pesquisa Laboratório Cenários Jurídicos (LACENJUR/FND/UFRJ).
Lembro
perfeitamente da primeira aula de direito que tive na vida. O professor, um
orador impecável e extremamente carismático, buscando despertar a paixão de
jovens alunos pela profissão que então escolheram, valeu-se de uma paródia com
Robinson Crusoé, clássico da literatura mundial.
A
ideia era usar a obra para demonstrar que a necessidade de regular os
comportamentos humanos era algo universal, axiomático, inerente à vida social.
Para tanto, começou dizendo que Robinson tinha uma vida completamente
desregrada, enquanto morava sozinho na ilha, pois não precisava se importar com
a opinião de terceiros. Assim, acordava, pescava e colhia cocos, comia e dormia
a hora que bem entendesse, já que ninguém iria reclamar, uma vez que somente ele
habitava aquela ilha. Todavia, quando apareceu o Sexta-feira... começou a
confusão.
O
índio era “da pá virada, ligado em 220 volts”, como diz o anedotário popular! O
tempo todo cantava e dançava, perturbando Crusoé, que queria dormir, algo
impossível diante daquele barulho. Não satisfeito, o índio passou a pegar a toda
comida e a catar cocos ainda verdes, desperdiçando-os ao impedir que ficassem
maduros.
Tudo
isto irritou o inglês, preocupado não só em recuperar o sossego, mas em garantir
a sustentabilidade da ilha, “o coco sagrado de cada dia”, profundamente
comprometido desde que o índio começou a abusar de seus direitos, falando que
era dono de tudo, do pescado ao coqueiral. Ensaiou até expulsar o inglês,
alegando que alguns de seus ancestrais já tinham armado palhoça por ali nos
tempos da pedra lascada.
Não
teve jeito, tiveram que conversar e buscar um acordo ou aquela história iria
estampar páginas policiais. Combinaram, pois, que às 2ª, 3ª e 4ª-feira fariam
assim e, nos demais dias, assado. Robson até achou positivo adotar alguma
disciplina, já que sozinho ficava ansioso e abusava da comida, o que já estava
lhe rendendo sobrepeso, mesmo comendo só peixe natural.
Como
se vê, esta foi a primeira regulação do comportamento humano que se teve
notícias por aquelas bandas, mas não foi, nem teria sido a última, pois
demonstrava de forma inequívoca a importância e a necessidade intrínseca de
regular o comportamento humano. Era algo necessário não só para dar
previsibilidade e permitir planejamento futuro, mas equacionar conflitos
passados e que ainda se refletiam no presente e, eventualmente do futuro.
Com
essa brincadeira, verifica-se que o direito é uma necessidade do ser humano,
indo muito além de uma necessidade que permeie tão somente relações de um
determinado grupo social, pois alcança a esfera exclusiva de cada um. Logo, por
menor que seja, estende-se até mesmo à esfera exclusivamente individual, à
medida que disciplina aspectos de cunho eminentemente individual. Não por menos,
não é incomum encontrar ordenamentos jurídicos que restringem o comércio de seus
próprios órgãos ou proíbem dar cabo da própria vida, afastando a liberdade de
disposição em prol de valores maiores.
Ademais, o caráter inexorável da regulação jurídica perpassa figuras centrais do
pensamento humano, a exemplo do contratualismo de Rousseau, no qual se advoga
que o homem nasce bom, mas o convívio social o degenera, sendo, portanto,
necessário firmar um pacto que regule a convivência.
Portanto, ainda que se vá em outra direção, não há como fugir à esfera do
direito e a necessária regulação das relações humanas, ainda que eminentemente
individuais, dado que dialogam com questões de cunho moral, alcançando a
sociedade como um todo.
Isto
ganha relevo ao se notar a pluralidade de perspectivas e de valores, mesmo em se
tratando de culturas mais ou menos homogêneas na contemporaneidade, reforçadas
pela facilidade de comunicação com novas plataformas tecnológicas e mídias
sociais. Assim, em que pese a necessidade de salvaguardar a liberdade de
expressão e a manifestação do pensamento em suas diferentes expressões, não se
pode negar que a possibilidade de abuso do direito é uma realidade onipresente e
inexorável, pois não está restrita a institutos e convenções do passado.
Destaca-se que mesmo ambientes plurais, como os franqueados às mídias sociais da
atualidade, estão sujeitos a abusos, pois a diferença que muitas vezes atrai,
pode também impor medo, sendo passível de reforçar um discurso de beligerância
que a história não se cansa de registrar ao longo dos tempos. Na atualidade,
este caráter instrumental, tem um potencial destrutivo ainda avassalador.
Remete-se, pois, à milenar lição aristotélica, que busca no meio o equilíbrio.
Assim, parece irresponsável deixar a regulação ao alvedrio de plataformas
privadas, que se orientam muito pelo lucro em detrimento da função social que
deveriam ostentar. A possibilidade de fomentar conflitos é inquestionável, uma
tendência que a experiência nacional e internacional tem retratado
constantemente, refém de algoritmos que funcionam como uma caixa-preta.
Enquanto se discute a possibilidade de regulação, o tempo, tido muitas vezes
como o “senhor da razão”, é inexorável e, colhido por interesses de cunho
capitalistas, muitas vezes divorciados e inconciliáveis com os da coletividade,
age extirpando o equilíbrio social de modo irremediável ao lidar com
determinados bens, solapados por um quadro de desonra ou de doença tardia,
impassível de cura.
Urge,
pois, a necessidade de regulamentação para mitigar tal conjuntura. Com efeito,
ainda que não sejam perfeitos, defende-se que a pauta de regulação desses
interesses requer o inafastável papel do Estado, bem como forte participação
social, dos diferentes estratos sociais, sob pena de ineficácia ou mesmo
desvirtuamento, reféns de grupos de pressão mais bem organizados e capazes de
impor seus interesses, que nem sempre convirjam com o interesse público.
Nenhum
direito é absoluto, com exceção para o internacionalmente detestável direito à
não tortura e à não escravidão, em relação aos quais, até mesmo, pode-se
encontrar quem também os relativize. Não se trata de restringir o espírito
humano e a sua criatividade. Estes não ficariam proibidos, em absoluto, mas
observarão uma normatividade mínima de regramento, até por uma necessária
previsibilidade na vida social ou corre-se o risco de reeditar uma versão do
“estado de natureza” hobbesiano em que tudo pode, sem se preocupar em ferir de
morte o outro, dinâmica esta que destoa da vida em sociedade. Destaca-se que não
se vive isolado em uma ilha deserta.
Legítimo, pois, e necessário colher um regramento mínimo para melhor equacionar
as mídias e a liberdade de manifestação de pensamento, sob pena de usar o
antídoto como veneno ao ignorar a possibilidade de abuso de direito, algo aliás,
recorrente desde tempos imemoriais na sociedade humana e que se mostra presente
na era do conhecimento e no uso contemporâneo de diferentes mídias, dado seu
caráter instrumental.
Pensar
diferente vai na contramão do papel do Estado e de sua função legislativa, que
deve pautar as diferentes necessidades sociais, buscando equilibrar as
diferentes demandas. Pensar diferente é vedar a atuação do direito, algo que é
inerente à sociedade humana e entender que as diferentes perspectivas e
interesses podem atuar em um verdadeiro estado de natureza hobbesiano ou trazer
para o mundo dos homens o ideal da Cidade de Deus de S. Agostinho.
Pelo
exposto, defende-se como necessário e imprescindível a regulação da mídia e da
liberdade de manifestação de pensamento, permitindo assim que estas não
extrapolem balizas mínimas de convivência social que poderiam levá-las à
extinção e que, sua ausência de regulação mais prejudicaria que fomentaria o
equilíbrio social.
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Por:
Isabelle Esteves Moulin
Doutoranda e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(FND/UFRJ). Pesquisadora
do
Grupo de Pesquisa Laboratório Cenários Jurídicos (LACENJUR/FND/UFRJ).
A liberdade de expressão é direito fundamental, inerente a todos,
conforme enuncia a Constituição da República em seu artigo 5º, incisos IV, VI e
IX, bem como ao longo de todo o texto constitucional. Os referidos incisos, do
Art. 5º, assim estatuem: “IV - é livre a
manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; VI - é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e
a suas liturgias; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Trata-se, ademais, de matéria disciplinada amplamente em tratados internacionais
de direitos humanos, que também possuem status constitucional, conforme
se verifica do artigo 13.1, da Convenção Americana de Direitos Humanos, e do
artigo 19, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirmam,
respectivamente:
“Toda
pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito
compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de
toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em
forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”.
“Todo
indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o
direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e
difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio
de expressão”.
Ainda,
cumpre pontuar que a liberdade de expressão engloba tanto a faculdade do
indivíduo de se manifestar quanto sua faculdade de não se manifestar, abarcando,
assim, tanto uma dimensão positiva quanto uma dimensão negativa.
A
discussão sobre o direito fundamental à liberdade de expressão é tarefa
complexa, há tempos enfrentada pela teoria constitucional, especialmente no que
tange aos seus limites.
Em
geral, entende-se que as limitações à liberdade de expressão somente devem
ocorrer em situações extremas, em que a restrição seja imprescindível para a
tutela de outro direito fundamental que seja atingido pela manifestação
veiculada, e que a suplante em juízo de ponderação, pautado pelo uso
instrumental do princípio da proporcionalidade, sob o risco de
institucionalização da censura. Aliás, censura também constitucionalmente
vedada, no Brasil, de acordo com o previsto no Art. 220, § 2º. E o próprio Art.
220 é bem específico ao defender, com unhas e dentes, o direito à liberdade de
manifestação de pensamento. Eis o seu teor: “Art.
220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o
disposto nesta Constituição. § 1º
Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade
de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado
o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º É vedada
toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (...)”.
De
acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desde o julgamento da
ADPF n. 130/DF, a liberdade de expressão, em razão de sua fundamentalidade
intrínseca, e sua correlação com o próprio Estado Democrático de Direito, seria
praticamente absoluta, o que, na prática, não se mostra verídico, ou mesmo
viável - especialmente quando se está diante de outra garantia fundamental,
tutelada em sede constitucional.
De
acordo com a melhor doutrina, haveria, em verdade, uma posição preferencial (preferred
position) do direito à liberdade de expressão em caso de conflito com outros
princípios constitucionais ou garantias fundamentais, como explica Luís Roberto
Barroso. Esta preferência, entretanto, não se confunde com uma hierarquia entre
normas constitucionais, já que gozam de mesmo status normativo, mas sim de uma
preferência intrínseca do direito à liberdade de expressão, dada sua correlação
com a própria democracia e o pluralismo político, quando do exercício da
ponderação de direitos. E sem se esquecer da própria ideia de uma interpetação
sistemático-teleológica da Constituição, com base, inclusive, nos dispositivos
acima já transcritos
Portanto, conforme o brevemente exposto, o tema da liberdade de expressão e suas
limitações é riquíssimo, e possibilita reflexões e debates diversos, seja em
relação a uma dimensão negativa/subjetiva de dever de abstenção, seja em uma
dimensão positiva/objetiva de agir estatal em prol de sua garantia. Ou, ainda,
mesmo na seara do direito privado e de eventual colisão com os demais direitos
da personalidade ou em âmbito de tutelas coletivas. A matéria demanda contínuo
estudo e atualização. Mas o argumento ligado à prevenção da limitação, a se
evitar restrições à liberdade de manifestação de pensamento, encontra, na
Constituição de 1988, manifestas bases e alicerces normativos.