DIRETAS JÁ?

Ação e Reação

Daniel Mitidieri Fernandes de Oliveira

Mestrando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo PPGD/UFRJ, pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições – LETACI/FND/UFRJ, Procurador Municipal e Advogado no Rio de Janeiro

Beatriz Scamila

Graduanda em Direito pela FND/UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições – LETACI/FND/UFRJ

PRESIDÊNCIA LÍQUIDA

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman notabilizou-se pelo uso da expressão tempos líquidos em sua produção intelectual. Reconhecido como importante intérprete da contemporaneidade, Bauman representa com o termo líquido a ideia de fluidez que marcou a passagem da sociedade de produção para a sociedade de consumo. Mais precisamente, a liquidez seria um conjunto de práticas que identifica o que se convencionou chamar, entre alguns teóricos, de pós-modernidade: imediatismo, hedonismo, individualismo, instabilidade e simplificação do sentido da vida a partir de uma lógica de consumo supérfluo. O líquido é a antítese da consistência e marca a era do descarte rápido.

Qual seria o paralelo entre a expressão marcante de Bauman e o atual estado de coisas na Presidência da República brasileira? Como poderia ser superada a crise atual que assola, sobretudo, o Executivo Federal?

Desde as eleições de 2014, tudo o que a Presidência da República não conseguiu foi consistência para implementar sua agenda de governo. O Executivo Federal no Brasil se liquefez, ou foi liquefeito. “Pautas bombas” na Câmara dos Deputados, escândalos sucessivos de corrupção na base aliada, decisões da Justiça contra nomeação de ministro, divulgação ilícita de escuta telefônica da Presidente, impugnação da chapa eleita perante a Justiça Eleitoral, “panelaços”, protestos pelo país. Todos esses elementos forjaram um ambiente de significativa perda de governabilidade para a Presidente eleita. Com isso, o país foi levado a enfrentar o processo de impeachment de Dilma Rousseff, que veio a ser substituída por seu Vice-Presidente Michel Temer.

Passado um ano do impeachment de Dilma, agora é o atual Presidente da República que se encontra por um fio. Após o acordo de delação premiada dos executivos da JBS, pairam suspeitas significativas sobre os predicados morais de Michel Temer para continuar à frente do cargo. A divulgação de escutas entre ele e o investidor Joesley Batista implodiu a confiança na capacidade do Presidente de conduzir, republicanamente, os destinos do país. As escutas também acirraram os ânimos da população e até fizeram brotar em segmentos da grande mídia a intenção de um novo processo de substituição presidencial antecipada. Não existe mais governabilidade também com Michel Temer.

Está claro que a Presidência do Brasil entrou em uma espiral de fracassos. E a legitimidade encontra-se dissolvida. Inegavelmente, essa espiral não vem dos fatos recentes envolvendo Temer. Na verdade, ela alcança seu ápice já com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, levado a efeito sem crime de responsabilidade. Todo o restante, como a crise atual, não passa de desdobramentos do problema principal, qual seja, o rompimento do limite de inegável respeito que deve circundar a Presidência da República. É chegado o momento de uma ação prática para recompor o espaço de legitimidade do chefe máximo da nação, atualmente sem capacidade de se sustentar senão através de meios artificiais. Esta ação prática é convocar o povo para retornar às urnas.

De fato, a situação política frágil de Michel Temer mobiliza calorosos debates sobre como o país deve lidar com a vacância do cargo de Presidente da República. Os legalistas sustentam a aplicação imediata da Constituição em vigor. Isto é, eleições indiretas pelo Parlamento brasileiro. Juristas de outros matizes já defendem eleições diretas. Tomando partido neste debate, parece que aos últimos assiste razão. O caso realmente não é de hermenêutica constitucional, mas de distribuição de força política no alto escalão da República. Somente a vontade popular pode recompor a credibilidade perdida da Presidência da República. Afinal, seria de todo incoerente aceitar a via hermenêutica neste momento, quando o impeachment de Dilma Rousseff foi todo ele balizado em premissas políticas e não exegéticas, como alegações de conjunto da obra e “pedaladas” fiscais.

Sobre os rumores de um possível impeachment de Donald Trump nos EUA, Eric Posner posicionou-se recentemente em sentido contrário. E seu alerta consubstanciou-se na tese de que o impeachment de Trump só enfraqueceria a instituição Presidência da República, ao normalizar um instrumento que poderia ser utilizado mais para fins partidários que morais. A banalização da ferramenta do impeachment pelo Congresso contra o Presidente desmoronaria o ambiente de estabilidade que se exige para qualquer governo realizar a democracia nos dias de hoje. Para o referido professor, está claro que o impeachment é um dispositivo que, a despeito de existir, não deve ser acionado, ante o risco de se desencadear o esfacelamento do Executivo Federal. Lendo as reflexões de Posner, até parece que ele se inspirou no caso brasileiro.

Portanto, para além de arranjos de substituição de vacância do cargo de Presidente da República previstos hoje na Constituição brasileira, seria relevante reconhecer a centralidade do voto popular como a melhor forma de sanear impasses de legitimidade política no âmbito do Poder Executivo. Em cenários de grande fragilidade institucional, o titular da soberania popular deve ser convocado para resolver o impasse e oferecer ao eleito o caldo de legitimidade que se precisa para governar um país, mesmo que isso não esteja no texto escrito da Constituição vigente. A própria credibilidade constitucional depende de projetos políticos, chancelados mediante eleições diretas. Se a Presidência líquida é indesejável, só eleições diretas podem estabilizar a nação outra vez.

José Ribeiro S. de Menezes

Mestrando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo PPGD/UFRJ

BRINCANDO DE DEMOCRACIA

É indubitável que brincar é diversão. Mas é somente isso? Alguns acham que brincar é perda de tempo, por isso criam uma agenda de compromissos formais para seus filhos, ignorando que por trás de um “pique pega” há muito mais em jogo.

O ato de brincar é fundamental para o sadio desenvolvimento da criança. Por intermédio de brincadeiras pode-se combater o sedentarismo, promover o autoconhecimento corporal, desenvolver competências socioemocionais, gerar resiliência, ensinar respeitar o outro, aprender a relacionar-se e aceitar as diferenças, fortalecer o autocontrole e estabelecer regras e limites. Brincar é sentir-se plenamente livre.

Cremos que uma parcela da sociedade brasileira, ou nunca foi criança, ou nunca brincou. Desconhecem que brincar é bom, e como é bom.

Por óbvio a conjuntura política, econômica e social atual do país, onde grassam a falta de legitimidade, o desemprego e o acirramento de ânimos, não nos autoriza, de forma responsável, a brincarmos com qualquer coisa, ainda mais com a democracia, que é um jogo sério, que pode ser praticado por quaisquer participantes.

Como todo jogo, o democrático tem suas regras e seus limites previamente estabelecidos a fim de proporcionar segurança, liberdade e igualdade de participação a todos os seus jogadores. Revela certa imaturidade aquele que, insatisfeito com o resultado de uma jogada previamente estabelecida na regra, pretende modificar o jogo, criando novas regras de forma oportunística. A democracia é mesmo equiparável a um jogo a ser jogado e esse mesmo jogo tem suas regras bem delimitadas.

Mudar as regras no curso do jogo desnatura-o, e a depender da forma como acontece, frequentemente não termina bem. Aqueles que já foram crianças, ou já brincaram, bem sabem disso.

Não é porque o jogador da vez “foi pego com a boca na botija”, fraudando o jogo, que, no calor dos ânimos, mudaremos suas regras. Decerto que o fraudador deve ser afastado da brincadeira, mas nem por isso deixaremos de jogá-lo. Cumpriremos todas as suas etapas e ao seu final todos seremos vencedores, porque brincar de democracia é bom, como é bom.

Portanto, atentemos para quaisquer movimentos que, majoritários ou não, no calor da emoção, natural de todos os seres humanos, mesmo que imbuídos de uma boa-fé interior, tentem alterar o rumo normativo, coordenado por um ordenamento jurídico, por sua vez liderado por uma Constituição. Ainda mais quando a proposta de alteração advier não de caminhos formal e previamente estabelecidos, como são, por exemplo, as regras de um jogo. Mas de um jogo bem jogado, respeitoso e oferecedor de todas as regras aos seus participantes.